terça-feira, 21 de outubro de 2008

Em Louvor de Sócrates ( II )


A minha empregada comprou casa e carro porque pediu empréstimo ao banco. Como ela própria me informou, todo o salário do marido e parte do salário dela serve para amortizar a dívida. O que sobra vai para alimentação, roupa e outras despesas correntes. Infelizmente, e nos últimos tempos, o pouco que sobrava foi-se evaporando com a subida dos juros. As prestações sobem e ela não sabe o que fazer à vida.

Eu entendo este aperto; no fundo , o aperto de qualquer português "trabalhador". Mas, em exercício de impensável moralismo, ainda perguntei : "E porque motivo comprou casa e carro quando provavelmente não os podia pagar?" ela olhou-me com a estranheza que usualmente reservamos aos extraterrestres. No mundo glorioso dos últimos anos, onde toda a gente podia ter casa, carro, férias e eventualmente jactos, o dinheiro era ilimitado. O resultado desta euforia está à vista: a crise financeira é um produto directo de uma crise mais prosaica, que os Estados Unidos exportaram. A crise do juízo. Ou, se preferirem, a ilusão de que é possível comprar o mundo com dinheiro que não existe. Quando a torneira começou a secar, descobriu-se que andava toda a gente - famílias, empresas, instituições financeiras - a viver do que não tinha. E agora?

Agora, provavelmente, não há outra solução que não passe pelo velho dinheiro público a salvar instituições privadas. "Garantir a liquidez dos sistemas bancários", diz o nosso Sócrates. Diz bem. Mas o senhor primeiro-ministro devia ter acrescentado que talvez tenha chegado a hora das famílias começarem a usar a cabeça porque a responsabilidade também lhes pertence. A ideia anti-igualitária de que nem toda a gente pode ter casa, carros, férias ou jactos talvez não seja simpática. Mas a realidade nem sempre é simpática.


João Pereira Coutinho no Expresso ( Divinas Comédias, Inferno, A Crise)

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