Se há coisa polissémica é o coiso. Mas a coisa não lhe fica atrás.
Uma rápida verificação no Houaiss mostra o tanto que a coisa é ou pode ser.
Lá está: "Tudo quanto existe ou possa existir, de natureza corpórea ou
incorpórea. ( as coisas do mundo)". É isso a coisa, mas não a coisa toda. Já o
coiso, por mais desmesurado, por mais possibilidades de sentido, tem menor raio
de alcance, coisa menos, abarca menos coisas que a coisa. Por isso, correndo o
risco de fazer jornalismo interpretativo, assim desagradando ao ministro Relvas,
sou tentado a contrariar o desdém geral pelo alegado lapsus linguae do ministro
Álvaro. Porque, em tempo de penúria, Álvaro acrescenta. Álvaro enriquece a
polivalência semântica. Por mais trapalhão, Álvaro diz-nos que o coiso é o nome
da coisa. Relvas pede desculpa por aquilo que desmentira e foge para diante,
nega ter feito um ataque à imprensa atacando a imprensa (acusando um jornal e
uma jornalista de construirem uma narrativa à qual adaptam a realidade). Relvas
não diz se a coisa é o nome do coiso. Se Álvaro não desmente o coiso, o terrivel
coiso, apenas vacila no momento de o nomear, Relvas não explica a coisa pela
qual se penitenciara, ainda que a desminta. Assim vai enchendo um balão de nada,
de coisa nenhuma. E até o primeiro ministro, naquela qualquer coisa que disse,
não querendo comentar a coisa doméstica em Chicago, foi por aí: "Não há nenhum
ataque a coisa nenhuma". Ora "coisa nenhuma" é nada. Um nada com um fio de ar
que parece conter, ainda, alguma coisa. Um pouco mais do que o superlartivo
absurdo "coisissima nenhuma" que o Houaiss também contempla. Fica, ao menos,
claro que coisar pode ser verbo de encher ou de esvaziar. Entre usos anómalos e
novas ênfases, torna-se evidente que a coisa foi sendo puxada para um novo
patamar interpretativo. Como observa a jornalista Maria José Oliveira, "em
momento nenhum" houve uma explicação para as ameaças que lhe foram feitas e ao
jornal onde trabalha. E isso, dada a narrativa entretanto construida, parece
ser, agora, uma coisinha de nada.
Estou ainda para aqui às voltas com o Houaiss, em busca do nome da coisa. E
cá está: pode a coisa ser algo que não se quer ou não se pode nomear; aquilo que
se pensa; interesse próprio; negócio, ocupação; o que não se sabe, mistério (o
Houaiss exemplifica: "era preciso investigar, pois ali havia coisa"). Há casos
em que até os dicionários adensam o enredo.
De tanto malbaratar o verbo e a etiqueta, mais valia a tanta gente, erguer
o coiso, quero dizer, o dedo e, sem medo, mudar de nome como no poema do
Drummond: "Meu nome novo é Coisa/ Eu sou a Coisa, coisamente". Não fosse a
estranha sensação de parecer que nos estão a coisar, teríamos aqui, como diria o
O'Neill, "uma coisa em forma de assim." Ou coiso e tal.
Fernando Alves em Sinais, na TSF
Sem comentários:
Enviar um comentário