terça-feira, 1 de maio de 2012

Soares, por J. Rentes de Carvalho



«Seria longo detalhar as razões da minha antipatia por Mário Soares como figura política. Datam de Paris, no começo dos anos 60, e permanecem. Tenho também pouco apreço pelos que, ingénuos ou ignorantes da História, e dizendo-se eternamente gratos, se lhe referem como “o homem que nos trouxe a Democracia.” Não trouxe. As peripécias são outras e menos simples.
Mário Soares desagrada-me ainda como pessoa, pois simboliza aquilo que detesto e de que desdenho na burguesia portuguesa: a falsa pachorra, a jovialidade de pechisbeque, o modo paternal, o sorriso pronto, a mãozada, os Ora viva!, a festinha aos humildes; por detrás de tudo isso a ganância, o cálculo frio, o desprezo do semelhante, a presunção, o sentimento bacoco de casta, os rapapés, a mediocridade.
O senhor Mário Soares sabe o que dele penso. Isso, contudo, parece não obstar, pois tenho recebido os seus livros, autografados, e surpreendeu-me um Natal, enviando um retrato seu, dedicado “Ao meu caro amigo J. Rentes de Carvalho”.
Surpresa tive-a também um dia em 1998, quando o competente e muito amável João Rosa Lã, então nosso embaixador em Haia, me telefonou anunciando:
- O Mário Soares vem cá almoçar e pediu que o convidasse, pois quer muito falar consigo.
Lá fui. Seríamos cinco ou seis, mas o cordial ex-presidente como que se apoderou de mim e, esquecendo os outros, esmiuçou longamente, miudamente, a sua visão da política portuguesa.
Fui ouvindo, e em determinado momento, para rebater o que ele afirmava disse-lhe:
- Mas isso, senhor presidente…
- Já não sou presidente! Chame-me Mário.
Agradeci, recusei, disse-lhe que da minha parte acharia indecorosa a familiaridade, se bem que…
- Se bem que?
- Dá-se o caso que o senhor presidente e eu já dormimos na mesma cama.
Contei-lhe depois a história, resumindo os detalhes e escondendo o remate.
Deve ter sido em Setembro de 1948, os dezoito anos feitos, que o Dr. Armando Pimentel , amigo e mentor, me convidou para um jantar em Macedo de Cavaleiros, onde padres ricos e proprietários abastados iam festejar a excepcional colheita de trigo e centeio desse Verão.
De Estevais a Macedo leva-se uma hora, naquele tempo dava a ideia de se ter feito grande viagem. Amesendámos na então já nomeada Estalagem do Caçador. Éramos muitos, eu o único jovem, sei que se começou com alheiras e chouriças, a seguir perdiz, borrego, leitão. O resto sumiu-se da memória.
Uns trinta anos depois aconteceu-me passar por Macedo, almocei na Estalagem, iniciando uma espécie de ritual, e desde então vezes sem conta lá comemos e pernoitámos, criando boa amizade com a D. Maria Manuela, que com simpatia e perícia dirigia o estabelecimento.
É ela que nos acolhe uma tarde de muito calor, manda preparar uns refrescos e, enquanto beberricamos e coscuvilhamos, diz que nos reservou um quarto especial.
Sobe connosco, abre a porta, e anuncia com maliciosa solenidade:
- O Mário Soares dormiu aqui ontem!
No fundo achamos desagradável a nova, é como se as exalações do corpo e da personalidade do homem ainda flutuem no aposento, mas sorrimos, dizemos umas palavras de circunstância, a D. Maria Manuela despede-se.
A empregada, transmontana, retornada de Angola, espera que a patroa desça, encosta a porta, e rosna, truculenta, ao mesmo tempo que nos agarra pelos braços:
- É verdade! O filho da puta dormiu aqui! Mas estejam descansados, que já desinfectei!»
(Retirado do blogue Tempo Contado, da autoria do escritor)

do blogue A Devida Comédia

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