sábado, 3 de janeiro de 2009

Cavaco, Conservador Fora do Tempo


Conservadorismo e Identidade Nacional
1.Uma das notas mais surpreendentes do discurso presidencial foi a referência num tom conservador à “necessidade” de proteger o pequeno comércio que “luta pela sobrevivência” e o “mundo rural”.
No primeiro caso, mais do que as PME’s e o seu dinamismo (tão vitais para o tecido económico português e que tanto têm sido objecto de debate político), Cavaco optou por defender a preservação de um sector específico. Que, como outros sectores tradicionais, tem dificuldades de adaptação que só têm solução quando há capacidade para gerar vantagens competitivas (pela qualidade, pela proximidade, pela diferenciação, ocupando nichos de mercado) e não mantendo artificalmente actividades e postos de trabalho cuja viabilidade é em muitos casos duvidosa. Mais do que preservar o comércio tradicional, talvez seja mais importante, e urgente, pensar na sua renovação, ausente das palavras e do espírito do discurso presidencial. Sem deixar, naturalmente, de olhar para as situações e dificuldades das pessoas que dele vivem, mas também sem a ilusão de que a resposta estrutural para os problemas do sector está na sua “defesa”.
2.Mas o caso mais flagrante deste registo conservador foi talvez o discurso sobre a protecção do mundo rural. Que, segundo Cavavo, seria parte importante da especificidade da nossa identidade nacional quando comparada com outros países.
Na verdade, todos os países europeus tiveram um passado rural; simplesmente, na maior parte deles as dinâmicas de modernização ocorreram muito antes do que sucedeu entre nós e as marcas das ligações à ruralidade há muito que sofreram uma forte erosão ou desapareceram quase por completo. Pelo contrário, em Portugal boa parte da população hoje “urbana” e litoralizada tem ainda pertenças e memórias familiares do mundo rural à distância de poucas (uma, duas) gerações, quando não contemporâneas. Mas, por isso mesmo, estão também muito presentes as razões fortes que os levaram ou aos seus antepassados próximos a procurar novas oportunidades de vida.
Representar colectivamente o “mundo rural” como cristalização de um passado mitificado que é, também em muitos aspectos, símbolo do país atrasado e atávico de há até poucas décadas não defende o “mundo rural”. Pelo contrário, condena-o à estagnação, ao abandono e ao consequente desaparecimento - tendência que vem de longe e que é uma das tendências sociais, económicas e demográficas pesadas dos últimos decénios em Portugal. Importante é, também aqui, insistir num discurso em torno dos caminhos para o desenvolvimento das áreas rurais, com ênfase na inovação e nas necessárias reconfigurações das actividades económicas (agricultura, turimo, sector energético) e não na “defesa” do passado de isolamento e estagnação de largas regiões do país.
3.O pior que poderia acontecer ao mundo rural seria tentar fazer dele um elemento distintivo da “identidade portuguesa”. E o pior que poderia acontecer à identidade nacional seria ser associada, outra vez, a um profundo conservadorismo. Como esta ideia de ruralidade, “tradicional” e virada para o passado - de que muitos fugiram e que outros, mais jovens, pura e simplesmente não (re)conhecerão, nem como realidade nem como referência.

Miguel Cabrita n' O País Relativo

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